No documento publicado no dia 23 de Maio, ficou notável a ousadia positiva nas recomendações feitas, embora algumas não pareçam tão novas ou colocadas pela primeira vez. Na verdade, muito tem sido tido por relatórios consequentes que o problema de desenvolvimento (e da ausência do Estado) é causa maior (não única) do conflito naquela região do país.
Porém, neste curto comentário não vamos necessariamente falar das recomendações, mas de uma secção que nutre nosso interesse em qualquer documento deste nível ou no campo da pesquisa de uma forma geral: a metodologia. Na verdade, o capítulo que discute a forma de recolha de dados, seu tratamento e abordagem é parte essencial em qualquer documento que se queira coerente.
No relatório da TotalEnergies, é referido que os resultados obtidos são fruto de métodos combinados, com destaque para a realização de entrevistas. Por exemplo, o destaque vai para a página 34 e passo a citar ‘’ Limitar-nos-emos aqui a fazer eco das opiniões recebidas através da consulta directa às comunidades, durante várias entrevistas, bem como de comentários de organizações da sociedade civil moçambicana.’’ Até aqui tudo bem.
Tal escolha metodológica é ainda reforçada no apêndice da página 46 do mesmo documento. Mais aí surge um espanto. Se a TotalEnergies afirma (página 27) como recomendação que a questão da língua é parte do problema na relação entre comunidades e o projecto LNG, como é que apenas fez entrevistas em língua portuguesa nas comunidades de Cabo Delgado? Tal pode ser visto na página 46 onde diz: ‘’Dado que um de nós era fluente em português, as entrevistas foram realizadas directamente em português sem recurso a intérprete’’.
E mais, em qualquer tipo de pesquisa, a não menção do número das entrevistas ou dos participantes do questionário, seu perfil sócio-demográfico (idade, sexo, profissão e escolaridade, por exemplo) coloca em causa a fiabilidade desses mesmos resultados. No caso em apreço, apenas sabemos que os entrevistados são provenientes de: Quitunda, Quitupo, Senga, Maganga, Mondlane, Palma e Mocimboa da Praia
Porém, tal não basta. Aliás, colocar ‘’fizemos muitas entrevistas com comunidades locais’’ (página 34) não diz tanto do ponto de vista da fiabilidade científica. Nada é referido sobre quantas pessoas foram de facto entrevistadas nessas localidades, muito menos suas idades, profissão, nível de diploma ou sexo. Para nós, mencionar esses dados deve valer para qualquer pesquisa, seja ela qualitativa ou quantitativa.
O nosso questionamento é motivado por razões óbvias, a saber: (i) o perfil dos entrevistados (sexo, idade, profissão e escolaridade) ajuda a perceber o peso de causa-efeito das recomendações feitas; (ii) recorrentes discursos aventam hipóteses sobre exclusão económica em Cabo Delgado, razão pela qual conhecer os dados não invasivos (não necessariamente o nome) dos entrevistados seria oportuno; (iii) a omissão do perfil dos entrevistados coloca grande limitação na leitura e compreensão dos resultados obtidos.
O argumento que pode ser colocado, mas que não aparece no relatório, podia ser: em contextos de conflitos, a menção de dados pessoais dos entrevistados (nome e localização, por exemplo) infringe a segurança dos mesmos. Ora, não nos parece que seja esse o caso deste relatório, porque o que se exige de um trabalho deste nível é que nos seja dito quantas pessoas, seu sexo e suas idades.
Ao revelar esses dados não se está a colocar ninguém em risco. Pelo contrário, o único dado passível de risco seria evidenciar de forma escancarada o nome dos entrevistados, embora mesmo tal fosse possível fazer, desde que se adultere a veracidade dos dados naquilo que em pesquisa chamamos de ‘’anonimização’’ ou ainda colocação de nomes que sejam fictícios.
Como afirmara Malthaner (2014), embora muitos contextos possam ser ambientes ‘’hostis’’ para a investigação em ciências sociais, os conflitos violentos e os regimes autoritários colocam desafios específicos ao trabalho de campo. Devido aos elevados níveis de vigilância e controlo por parte de agentes governamentais ou grupos armados não estatais, ou devido à insegurança e imprevisibilidade em contextos de violência, os investigadores podem enfrentar problemas na negociação do acesso, relações difíceis no terreno e ameaças à segurança dos seus inquiridos e deles próprios. Para além das questões éticas, estes obstáculos levantam problemas de enviesamento, amostragem e validade dos resultados obtidos.
E mais, no relatório em apreço, não fica claro se houve um comité de ética de pesquisa, formulários de consentimento para recolha de dados ou algo similar. Em nota final, esperava um pouco mais deste relatório na sua dimensão metodológica, mesmo que as entrevistas do tipo questionário não tenham sido as únicas usadas como base para a sua redacção.
Referência única
Malthaner, Stefan, ‘’Fieldwork in the Context of Violent Conflict and Authoritarian Regimes’’, in Donatella della Porta (ed.), Methodological Practices in Social Movement Research, Oxford, 2014.
Ver aqui o relatório da TotalEnergies (em língua inglesa).