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Sobre o ‘Novo Cartão’ de Eleitor: Notas para Reflexão

No segundo dia após o início do Recenseamento Eleitoral, procedi ao meu registo, na qualidade de potencial eleitor. Tal sucedeu no dia 21 de Abril de 2023. Porém, para este texto, não pretendemos repetir os comentários apresentados em relação à morosidade de atendimento, à falha técnica das máquinas na captura de imagem de determinados segmentos sociais, às possíveis manipulações ou à fraca capacidade mobilizadora dos partidos políticos em sublinhar a importância deste importantíssimo acto de manifestação democrática.

Todavia, a nossa opinião visa, particularmente, abordar uma faceta até aqui menos explorada: a protecção de dados pessoais em períodos eleitorais e os seus efeitos políticos. Mas antes da opinião propriamente dita, importa destacar o que a literatura especializada em Ciência Política designou de ‘materialidade do voto’ – todos os artefactos simbólicos e visíveis que constituem a estrutura eleitoral, desde a fase do recenseamento até ao anúncio dos resultados (Faucher, 2016) – é a cultura material das eleições (Cartão de Eleitor, cartazes, panfletos, camisetes e a sua vida durante e após a votação). No caso em apreço, a materialidade de análise, neste texto, será o Cartão de Eleitor.

No continente africano, tem-se demostrado que, desde os anos 2000, os processos eleitorais tornaram-se ainda mais complexos, com a introdução de novas tecnologias na organização das eleições, no seu controlo e na contagem dos votos. Argumenta-se, inclusive, que a transparência e a modernidade políticas são actualmente encarnadas em objectos sofisticados: registo biométrico dos eleitores, sistema paralelo de recontagem por SMS, impressões digitais, máquinas de votação velozes e localização de Assembleias de Voto por telemóvel – todos esses elementos são considerados dispositivos materiais que pressupõem garantir a veracidade da informação sobre o eleitor e a eleição, a fiabilidade da contagem ou da contra-contagem, inclusive a sinceridade do voto (Perrot et al., 2016).

Nesse caso, o Cartão de Eleitor é um dos instrumentos centrais que acompanha todo o ‘ritual do voto’ (Deloye, 2008), mas pode ser utilizado para muito mais. Como afirmado no passado por Do Rosário e Muendane (2016), no caso de Moçambique, os Cartões de Eleitor são usados para muitos fins, excepto para votar: são documentos de identidade relativamente fáceis de obter, permitem o acesso a uma série de serviços sociais e são, por vezes, usados como documentos de viagem.

O Cartão de Eleitor é, por isso, um ‘passaporte’ que não é necessariamente obtido para as eleições. Ou seja, podemos afirmar que o mais interessante não é per si o acto de ir votar, todavia, o significado simbólico por detrás do registo eleitoral. Assim, para alguns eleitores, mesmo com o cartão, a preferência não será necessariamente votar, porque o Cartão de Eleitor se configura um meio documental para obter benefícios, desde sociais, políticos e até económicos.

Ainda no caso de Moçambique, Do Rosário e Muendane (idem) explicam que o recenseamento às Eleições Presidenciais e Legislativas de 1994 e 1999 foi efectuado manualmente e, em seguida, actualizado para as Eleições Autárquicas de 1998 e as Eleições Presidenciais e Legislativas de 2004, utilizando um Modelo de Reconhecimento Óptico (Optical Mark Recognition, OMR).

Em 2007, uma nova Comissão Nacional de Eleições (CNE) tomou posse e, por conseguinte, uma nova lei de recenseamento foi aprovada, tendo a CNE adoptado a utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação (recolha electrónica de dados) para o recenseamento, em preparação para as eleições locais de 2008 e gerais de 2009 – Presidenciais, Legislativas e de Assembleias Provinciais. Para a recolha de dados, utilizou-se um kit portátil contido numa mala, o “Mobile ID Kit’’ (DSDK). Mais tarde, substituiu-se por um mini-computador.

Em termos teóricos, no campo das eleições e sua relação com a tecnologia, a recolha e utilização de dados para a angariação de apoio político ou campanhas políticas sem a devida autorização trouxeram à tona a necessidade de proteger o direito à privacidade e garantir um ecossistema transparente, ético e legal no tratamento de dados pessoais. Nos últimos anos, a utilização das novas tecnologias nas eleições emergiu como uma questão fundamental, com preocupações em torno da pirataria informática de bases de dados, manipulação dos meios de comunicação social e interferência tecnológica estrangeira, que suscitaram preocupações e debates públicos em todo o mundo.

A título exemplificativo, em 2016, o Comité de Inteligência do Senado dos Estados Unidos da América (EUA) encontrou provas da interferência russa e manipulação dos meios de comunicação social nas Eleições Presidenciais Americanas de 2016. Ainda nos EUA, lembremo-nos da empresa Cambridge Analytica, que, naquele ano, desenvolveu estratégias de micro-direccionamento (microtargeting), através de plataformas de redes sociais virtuais. Ademais, em África, em países como Kenya, onde a protecção de dados e o uso da tecnologia nas eleições está largamente avançada, ainda se debatem com questões e desafios profundos sobre esta matéria.

Após a contextualização supra, a pergunta que nos colocamos é: Moçambique possui um quadro legal de protecção de dados (mesmo que não seja no campo eleitoral)? A resposta simples e directa é não. Ou seja, o País não possui, até ao momento (Maio de 2023), uma lei que pode ser descrita como basilar para a protecção de dados. Existem apenas “retalhados’’ que, potencialmente, podem ser aplicados para o campo. Tal inclui: (1) o Código Penal (Lei n.º 24/2019, de 24 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 17/2020, de 23 de Dezembro); (2) a Lei do Trabalho (Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto); e (3) a Lei das Transacções Electrónicas (Lei n.º 3/2017, de 9 de Janeiro).

Além disso, a Constituição da República de Moçambique (CRM) estabelece que todos os cidadãos têm o direito à protecção da sua vida privada, à honra, ao bom nome, à reputação, à protecção da imagem pública e à reserva da intimidade da vida privada. Por conseguinte, no seu artigo 71.º, identifica-se a necessidade de legislar sobre o acesso, a produção, a protecção e a utilização de dados pessoais informatizados (quer por entidades públicas ou privadas); no entanto, a legislação de implementação ainda não foi aprovada.

Apresentado o escopo supra, fica clara a nossa vulnerabilidade perante os dados recolhidos pelos órgãos eleitorais, não se sabendo de facto a sua eficácia de armazenamento ou os fins pelos quais podem ser usados no futuro. Ou seja, no campo eleitoral moçambicano, não se percebe o escopo legal que rege os nossos dados pessoais, sobretudo quando inexiste uma Agência de Protecção de Dados (Data Protection Agency, DPA), que cuide desta área, como sucede noutros países. Tais agências seriam autoridades públicas independentes que controlam e supervisionam, através de poderes de investigação e correcção, a aplicação da Lei da Protecção de Dados, prestando aconselhamento especializado sobre questões de protecção de dados e o seguimento jurídico de queixas relativas à violação da lei.

Ora, na actual lei sobre o Recenseamento Eleitoral, não conseguimos encontrar alguma matéria que se refira ao campo da protecção de dados recolhidos por meios electrónicos. Ademais, no processo em curso que, além da recolha facial (foto), incluem-se as impressões digitais, o número do celular, entre outros dados, também se desconhece o seu devido tratamento e protecção para garantir a privacidade do eleitoral e seus direitos digitais-políticos.

Sobre o contacto telefónico, a hipótese provável a ser colocada é que este seja usado para o envio de alertas sobre a data de eleições ou o anúncio de marcos centrais sobre o respectivo processo. Porém, o que não fica claro é que a recolha do contacto não é opcional, mas sim obrigatória. Ou seja, solicita-se ao eleitor que providencie o seu contacto telefónico, sem que lhe seja reservado o direito de recusar ou ser explicado as razões de tal recolha. Adicione-se o facto do código de leitura QR [Quick Response – resposta rápida] não ser funcional, não se percebendo por que razão este faz parte do Cartão de Eleitor.

Por fim, assumimos que a introdução do recenseamento informatizado desempenha um papel fundamental na recolha sistemática e precisa de dados eleitorais, facilitando a verificação de nomes e melhorando a previsão do número de potenciais eleitores. Contudo, problemas conexos podem ser associados, desde a manipulação de dados, sua duplicação, uso indevido de informação pessoal dos eleitores, bem como o envio em massa de mensagens (texto) durante a campanha eleitoral, sem a devida autorização dos eleitores.

Referências

Déloye, Y. et alL’acte de vote. Paris. Presses de Sciences Po. 2008.

Do Rosário, D. M. & Muendane, E. “To be registered? Yes. But voting?” – Hidden electoral disenfranchisement of the registration system in the 2014 elections in Mozambique. Politique Africaine. Vol. 144. No. 4. 2016. pp. 73-94.

Faucher, F. et al. Les rituels de vote en France et au Royaume-Uni. Revue française de Science Politique. Vol. 65. No. 2. 2015. pp. 213-236.

Perrot, S. et al. La fabrique du vote: placer la matérialité au cœur de l’analyse. Politique Africaine. Vol. 144. No. 4. 2016. pp. 5-26.