Notas iniciais
Certamente, continuam presentes os dois episódios que tiveram um denominador comum: juventude. O primeiro terá sido um acto de chamada de atenção nas fileiras internas da Organização da Juventude Moçambicana (OJM), dando conta de um eminente violar dos estatutos internos, por conta do aproximar da idade-limite para o exercício de alguns direitos e deveres naquela organização juvenil, tendo como horizonte a realização do II Congresso daquela organização social e partidária. Tal ‘aviso’ à navegação juvenil terá sido feito, segundo fontes variadas, pelo Secretário-Geral da Frelimo, Roque Silva. Este acto viria a ser confirmado através de uma carta dirigida aos Secretários Provinciais e da Cidade de Maputo daquela organização, datada do dia 12 de Abril, tendo sido assinada pela Secretária-Geral, Anchia Talapa Formiga.
O segundo episódio, exposto ao grande público, foi em resposta à indicação presidencial da nova Ministra dos Combatentes, vista por muitos a partir da sua aparente jovialidade e, por via disso, espanto generalizado para o cargo que fora comissionada pelo Presidente da República.
Chegados aqui, provavelmente, a pergunta que surge seja: Que relação terão estes dois factos? Ora, a resposta rápida e simples talvez fosse: Nenhuma. Contudo, pensamos que ao assumir tal posição, estaríamos a eximir-nos de reflectir sobre um assunto mais amplo do que parece, daí a proposta do presente ensaio. Nesses termos, a nossa argumentação pretende ser nada mais do que o lançar de algumas propostas de reflexão em relação ao que, no nosso entender, explica o cenário de permanente ‘desconfiança política’ em torno dos jovens. Para tal, apresentaremos a nossa posição em três momentos.
- A questão da idade na política
Comecemos pelo conceito do que entendemos por juventude. Certamente, já devemos ter ouvido expressões como “eu não sou jovem de idade, mas sim de espírito”. Mas o que isto concretamente significa, num contexto em que se vulgariza o ditado segundo o qual os jovens são a maioria?
No nosso entender, não existe uma única definição sobre juventude. Aliás, não se pode mesmo assumir que se fale de juventude, mas provavelmente de diversas juventudes, na sua dimensão plural do termo (Muxel, 2010). Porém, para fins estatísticos, as Nações Unidas, sem prejuízo de quaisquer outras definições feitas pelos Estados-membros, definem a “juventude” pelo grupo etário composto por pessoas entre os 15 e os 24 anos. Esta definição, que surgiu no contexto dos preparativos para o “ano internacional da juventude”, em 1985, foi endossada pela Assembleia Geral através da Resolução 36/28 de 1981. É assim que todas as estatísticas da ONU sobre jovens se baseiam nesta definição, como é reflectido nos anuários de estatísticas publicados pelo sistema das Nações Unidas sobre demografia, educação, emprego e saúde. Ademais, as Nações Unidas explicam que, em muitos países, a “maioridade” diz respeito à idade em que uma pessoa recebe tratamento igual perante a lei. Enquanto isso, a USAID (2012) visa os jovens entre os 10 e 29 anos. Não obstante, a definição operacional e as variantes do termo “juventude” oscilam de país para país, dependendo de factores sócio-culturais, institucionais, económicos e políticos.
Moçambique é um país com uma população em que mais de 50% possui menos de 35 anos de idade (INE, 2019), sendo que a idade média se situa nos 16 anos, o que faz com que o discurso em torno da “juventude” seja regularmente colocado numa dupla dimensão. Por um lado, trata-se de nos questionarmos em torno da produção de números relativos à população considerada jovem, dado que existem relatórios estatísticos e estudos demográficos contraditórios sobre o mesmo assunto. Por outro lado, existe um quadro jurídico, sobretudo a Política da Juventude (Resolução nº 16/2013, de 31 de Dezembro), que apresenta unicamente a dimensão biológica do significado de “juventude”, sendo que tal recai de forma recorrente no intervalo entre 15 e 35 anos. É, portanto, uma realidade que acontece num contexto em que há tendência de se diferenciar a acção dos jovens de acordo com as sucessivas gerações, ou seja, em comparação com os adultos.
Por conseguinte, fica evidente que, como uma categoria analítica demasiada ampla, falar apenas de “juventude” não se consegue lidar com a diversidade e ambiguidade do fenómeno em si, continuando a ser difícil desenvolver teorias concretas e reduzir a imprecisão sobre o seu significado (Burgess, 2005). Desta feita, o desafio é compreender a sua dimensão plural, visto que se acredita que esta noção não existe como uma singularidade – ou seja, precisamos falar de jovens e não de juventude. Note-se ainda que esta imprecisão conceptual sobre a ideia de “juventude” traz, por consequência, efeitos prejudiciais no estudo do fenómeno em si, pois tem-se tornado cada vez mais complexo compreender com exactidão quais os grupos que estão a ser estudados, se não houver clareza conceptual sobre a sua demarcação, suas escolhas e motivações.
A “juventude” surgiu como uma fase reconhecida no ciclo de vida, tendo sido definida a partir de um conjunto de construções discursivas herdadas em narrativas históricas que diferenciavam a sua geração de outras. Ou seja, os jovens são sempre definidos na base de uma comparação em relação aos adultos, mesmo que tal varie de sociedade para sociedade. Com efeito, a noção comum é que existem certos critérios pré-definidos para que uma pessoa seja identificada como parte desse grupo: idade, inserção social (possuir uma habitação, por exemplo), capacidade política (votar, por exemplo) ou dimensão sócio-cultural (ser pai/mãe ou, então, constituir família própria).
Assim, fica evidente que não existe uma definição consensual sobre o que podemos entender por “juventude”, sendo que várias dimensões podem ser invocadas para o efeito. Geralmente, “juventude” passa a ser um termo associado à idade dos indivíduos, na qual começam a beneficiar-se dos seus direitos cívicos. Contudo, se podemos assumir que a o intervalo da idade biológica é necessária para efeitos de convenção meramente estatística, não devemos tomá-la como único critério de definição da(s) juventude(s). Diante desta realidade, para nós, “juventude” não é apenas uma fase da idade biológica (18 aos 35 anos), mas uma busca permanente de inserção (e superação) social, económica e política, com vista a sair da dependência imposta ao longo da história pelos adultos, seja no seio familiar ou na sociedade no geral. Como se pode depreender, o cenário de ausência de clareza na definição sobre o que se entende por juventude(s) torna difícil qualquer exercício reflexivo que se queira completo e esclarecedor, o que explica o segundo ponto que desenvolvemos a seguir.
- Entender a relação entre juventude(s) e poder
Se voltarmos para a colocação feita sobre a idade-limite do exercício da votação no seio da OJM, certamente fica claro que o debate não é, em si, se tais jovens tenham idade ou não para o efeito; é, no nosso ponto de vista, uma discussão sobre a percepção social que se tem sobre o que significa ser jovem em Moçambique. Considerando as diferentes definições avançadas acima, torna-se cristalino que a luta pelo poder ultrapassa o quesito meramente da idade biológica. Aliás, não deixa de ser interessante perceber que na carta da Secretária-Geral da OJM surja como elemento indicador o intervalo de idade que varia dos 15 aos 35 anos de idade. Diante desta realidade, duas interrogações podem ser feitas. A primeira, somos tentados a questionar sobre a razoabilidade da idade de quem dirige a mesma OJM, dado que a Secretária-Geral terá nascido no dia 24 de Dezembro de 1984 (38 anos em 2022). Em segundo lugar, se assumimos que a maioridade do voto em Moçambique situa-se nos 18 anos, qual é a ciência explicativa da fixação dos 15 anos como idade limite-inicial no seio da OJM?
Tudo isto nos leva ao segundo ponto, que tem ligação directa com o espaço político ocupado pelos jovens em Moçambique (*ver artigo 123 da Constituição da República de Moçambique, 2014). Para tal, comecemos por recordar expressões como “juventude, a seiva da nação” ou, ainda, de “geração da viragem”, duas épocas governativas diferentes que ficaram marcadas por etiquetar politicamente os jovens. Porém, mais do que meros discursos, o importante passa por perceber o que significa de facto ser ‘seiva da nação’ ou pertencer a uma geração que se queria da ‘viragem’? Ora, entenda-se que esta forma de encarrar os jovens não é única de Moçambique, dado que a politização desta franja da população por parte dos reesposáveis políticos ocorre de forma recorrente no campo político, seja por parte dos partidos no poder ou da oposição.
No geral, nota-se que os jovens enfrentam o que podemos designar como “síndrome de adultismo” – dos seus professores, dos seus pais, dos seus treinadores, e inclusive dos seus pares. Dito de outro modo, os jovens devem sempre seguir uma orientação que seja superior pela idade, pelo estatuto social ou político. Entretanto, entendemos que enquanto os jovens podem ser influenciados pelas pessoas e pelos contextos que lhes rodeiam, é fundamental que eles também sejam considerados actores dos seus destinos. De facto, todos os dias, os jovens são recordados desta suposta subserviência ou inferioridade em relação aos adultos. Não são levados a sério, pelo que são, muitas vezes, descartados dos processos de tomada de decisão. Por exemplo, quando eles chegam aos 18 anos, a expectativa social colectiva é que tenham emergido da “infância” membros plenamente formados da sociedade, já preparados com expressão e opinião confiantes. Nesse contexto, torna-se importante inverter a realidade, por forma a dar voz aos que não a possuem, em particular aos jovens, no geral, e, de forma particular, às mulheres.
Numa dimensão alargada, Adebayo (2018) argumenta que o envolvimento político da(s) juventude(s), na maioria dos países em África, não reconhece a agência autónoma desses jovens. Pelo contrário, a narrativa assume que eles (os jovens) carecem de uma voz própria. Isto é sugerido pela forma como os adultos pressupõem que quaisquer que seja o papel desempenhado pelos jovens é, em última análise, os que lhes são atribuídos pelos adultos, e que eles são agentes passivos. Esta perspectiva sugere ainda que mesmo onde os jovens são trazidos para a política, dificilmente tem sido com base nos seus próprios termos, mas nos dos adultos que comandam tais políticas.
Este cenário nos faz pensar no termo usado por Adebayo (2018) para designar a ‘’emergência da gerontocracia’’ na submissão dos jovens em relação ao contexto político nalguns países em África. Ou seja, a existência de uma tradição segundo a qual o poder e as decisões mais importantes são reservados para as gerações mais adultas, sendo que a responsabilidade das camadas mais jovens é apenas a obediência. Segundo o mesmo autor (idem), após o alcance das independências dos países africanos, entre os anos 1950-1970, floresceu um grande optimismo quanto ao futuro das democracias nascentes no continente. No concreto, uma população próspera transformou as suas memórias de duras lutas políticas em imagens de heroísmo e confirmou a vitória do movimento nacional de libertação.
Havia, neste sentido, a esperança de que estas novas nações dirigiriam em breve os seus próprios destinos de Estado e realizariam eleições livres, justas e regulares, que seriam verdadeiros reflexos dos desejos da maioria da população. Todavia, o que se revelou depois estava (e ainda está) longe do que se esperava. A agitação civil e a anarquia cedo reinaram na maioria dos países africanos, uma vez que os chamados “pais e fundadores” se consideravam acima da lei. Pelo que, numa tentativa de manter o poder, iniciaram um sistema de manipulação e violência eleitorais que continua a permear o continente. Mais preocupante foi o nascimento de uma cultura que excluiu os jovens da participação activa na política, o que resultou na retenção de políticos mais velhos, numa liderança ocupada principalmente por septuagenários e octogenários. Essa realidade é igualmente verificada em Moçambique, onde faltam exemplos concretos de ascensão evidente dos jovens nos cargos de tomada de decisão efectiva, limitando-se para cargos que, apesar de importantes, ainda são insuficientes, se tivermos em conta o peso demográfico da franja da população considerada jovem no país.
Para Bangura (2022), a história de África é caracterizada por movimentos de jovens, dado que a massa juvenil desempenhou, no continente, um papel central na luta contra o colonialismo e, desde a independência, vários segmentos constituídos por jovens estão no centro da mobilização social. Recentemente, os meios digitais de comunicação contribuíram significativamente para a galvanização dos movimentos sociais liderados pelos jovens (Tsandzana, 2020). Contudo, o impacto das vozes juvenis é frequentemente marginalizado por abordagens patriarcais e gerontocráticas de governação, negando-lhes o lugar, a voz, e o reconhecimento que merecem.
- À guisa de conclusão
Diante do acima exposto, chegamos, por conseguinte, à terceira e última proposta de debate, na qual inferimos, de forma hipotética, que pensar sobre os jovens e política em Moçambique, convida-nos para um debate maior que não pode unicamente ser visto do ponto de vista da idade que esses actores possuem. No nosso entender, a participação política juvenil não é apenas um direito político e democrático fundamental; é, acima de tudo, a construção de uma sociedade pacífica que procura responder às necessidades específicas das gerações mais jovens, pois, persistindo obstáculos à participação em processos políticos formais e institucionalizados, os jovens podem rapidamente se sentir destituídos de poder, dado que muitos tendem a acreditar que as suas vozes não serão ouvidas ou não serão levadas a sério. Assim, com o II Congresso da OJM previsto entre os dias 20 a 22 de Maio, espera-se para ver se o que reinará é a lógica errônea do significado de juventude(s) ou o recorrente agenciamento ‘adultista’ em relação aos jovens?
Referências
Adebayo, J. Gerontocracy in African politics: youth and the quest for political participation. Journal of African Elections. Vol. 17. No. 1. 2018. pp. 140-161. https://doi.org/10.20940/JAE/2018/v17i1a7
Bangura, I. Youth-Led Social Movements and Peacebuilding in Africa. New York. Routledge. 2022.
Burgess, T. Introduction to Youth and Citizenship in East Africa. Africa Today. Vol. 51. No. 3. 2005. pp. 7-24. https://www.jstor.org/stable/4187665
INE. IV Recenseamento Geral da População e Habitação 2017: Resultados Definitivos Moçambique. Maputo. Abril de 2019.
Muxel, A. L’engagement politique dans la chaîne des générations. Revue Projet. Vol. 316. No. 3. 2010. pp. 60-68. https://doi.org/10.3917/pro.316.0060
Tsandzana, D. Redes sociais da Internet como “tubo de escape” juvenil no espaço político-urbano em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos. Vol. 40. No. 2. 2020. pp. 167-189. https://doi.org/10.4000/cea.5500
USAID. Youth in development Realizing the Demographic Opportunity. 2012.
*Texto actualizado no dia 14 de Abril – 09h10, após a publicação de uma missiva da Secretária-Geral da OJM (ver primeiro parágrafo).