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Notas sobre o terrorismo, a crise humanitária, os apoios e a soberania

Em 2019, Vincent Foucher e Fabrice Weissman escreveram um texto para abordar o que chamaram de ‘’fábrica de uma crise humanitária’’. Os autores discutiram de que forma foi ‘forjada’ uma aliança humanitária em prol da população afectada pelo terrorismo na Nigéria, ao mesmo tempo que ilustraram a brutalidade da contra-insurgência do exército nigeriano, que usou-se dos apoios provindos de entidades internacionais para cometer diversas atrocidades.

Como ilustra De Montclos (2020), combinar abordagens militares, de desenvolvimento e humanitárias para restaurar a paz e acabar com uma crise não é novidade. De facto, a ideia tem a sua origem em duas correntes principais que surgiram gradualmente durante o século XIX. A primeira, inspirada na filantropia e no liberalismo, procura salvar os povos em perigo e promove o princípio da intervenção armada em nome dos interesses superiores da humanidade. A outra, de origem militar, é construída no contexto da colonização e visa desenvolver acções sociais para ‘’conquistar os corações e as mentes’’ das populações dos territórios ocupados.

Note-se ainda que no debate sobre o terrorismo e a ‘ajuda humanitária’, a vasta literatura refere tal questão do ponto de vista da soberania que os países possuem de aceitar (ou não) determinados apoios, o que pensamos ter sido, por exemplo, o fio condutor da última fala do Presidente Filipe Nyusi quando este abordou o que chamou de ‘’salada de intervenções’’. Contudo, nota-se aqui que a definição, canónica desde Carl Schmitt, de soberania através da situação de excepção está hoje em crise: em torno da emergência e da catástrofe (a sua produção, a sua conspiração ou o seu cuidado), existem hoje múltiplos actores dos quais o ‘Estado soberano’ precisa para a sua própria sobrevivência. Podemos mesmo falar de alianças objectivas, onde entre a razão da existência do Estado, as exigências humanitárias e as estratégias de combate ao terrorismo, o espaço político tem de ser reinventado.

Importa sublinhar que tanto os terroristas, quanto os praticantes de acções humanitárias, estão interessados na vida, mas de formas opostas. Os agentes humanitários, na sua retórica, não fazem distinções explícitas com base na cor da pele, etnia ou religião. O terrorista, por outro lado, faz retórica clara distinção entre amigo e inimigo, mas na prática, o inimigo é para o terrorista o que é o desastre para o agente humanitário: refere-se a um espaço, tanto geográfico como imaginário – a América e os seus aliados, os judeus e os seus amigos, o governo e os seus colaboradores – no qual qualquer pessoa pode ser alvo.

Quer se trate de uma contribuição directa para os orçamentos dos Estados em dificuldade ou através do apoio para pequenos projectos geridos por ‘organizações da sociedade civil’ (OSC), a ajuda humanitária internacional não é um tema de consenso. Vezes sem conta, tal apoio pode ser utilizado para financiar operações militares, facilitar movimentos populacionais forçados, fornecer guerrilheiros em campos de refugiados, apoiar a comunicação de certos beligerantes ou mesmo legitimar certos combates. Frequentemente, a assistência da comunidade internacional é, de facto, capturada pelos grupos dominantes. Não contente em criar enclaves sob infusão humanitária, tem assim o efeito de aprofundar as desigualdades económicas e sociais, inclusive em tempo de paz, por exemplo no Sahel, privilegiando as OSC nas mãos da elite e sectores da administração financiados pela ajuda oficial ao desenvolvimento (Blundo, 2011).

Por seu turno, Ophir (2006) vai argumentar que na arena pós-moderna de grandes catástrofes, nos campos de refugiados por conta do terrorismo, parece existir três processos relacionados de desconstrução da soberania: em primeiro lugar, o conceito monolítico, unificado e coerente de soberania está a ser minado pela própria multiplicidade de agentes que negoceiam, competem para criar novos Estados de excepção; em segundo lugar, está a surgir uma lacuna no centro dos mecanismos omnipresentes do ‘biopoder’, que parecem impotentes no preciso momento em que são mais necessários; em terceiro lugar, os limites territoriais que inscrevem a soberania no espaço estão constantemente a ser ultrapassados pelos múltiplos actores, bens e informações que saem ou entram no local da catástrofe. Mas estes três processos não teriam sido possíveis sem o discurso e as práticas humanitárias, a desordem, a angústia e a morte disseminadas pelo terrorismo.

Note-se que os agentes humanitários esperam ter um acesso mais fácil aos locais e vítimas da catástrofe, apresentando o espaço humanitário como apolítico, enquanto que os terroristas procuram promover uma alternativa radical ao campo político e evitar qualquer forma de negociação com o poder soberano. O próprio poder beneficia da despolitização da catástrofe, uma vez que lhe permite negar a sua responsabilidade pelas condições que a tornaram possível. As autoridades também beneficiam da despolitização do terrorismo, porque lhes permite evitar ter em conta as exigências dos terroristas, bem como as motivações e situações que alimentam essas exigências. Em ambos casos, o primado do princípio apolítico pode servir como instrumento de despolitização, ajudando a camuflar e reproduzir a base ‘biopolítica’ da soberania moderna, reforçando o poder do Estado, e enfraquecendo a dimensão universalista da cidadania. Mas cada vez o que está em jogo é a suspensão – necessariamente temporária – do problema político levantado pelos dois rivais do soberano: os agentes humanitários e os terroristas.

Não há dúvidas que o acto terrorista mina a capacidade do Estado de administrar a vida dos seus cidadãos, sendo frequentemente um meio para um objectivo último: a destruição do Estado e o estabelecimento no seu lugar de uma entidade política radicalmente diferente. A acção humanitária esforça-se, em princípio se não sempre na prática, por submeter os arranjos ‘biopolíticos’ ao imperativo de preocupação com a situação dos outros. Esta exigência possui, em princípio, uma exigência de uma inevitável transformação política das condições em que as catástrofes emergem. Esta transformação política implica a eliminação do Estado de emergência permanente e o restabelecimento de uma dimensão cívica para o mundo vivido das populações afectadas.

Se a soberania política é definida pelo poder, conferido por uma ordem jurídica, de proclamar uma excepção a essa ordem e de declarar o estado de emergência – como Carl Schmitt argumentou – e se o Estado de emergência proclamado por um soberano é o momento em que a vida é abandonada pela lei e exposta à violência que nenhuma lei pune – como explica Giorgio Agamben – então pode dizer-se que os grandes desastres põem em causa o princípio da soberania. Um Estado de emergência e excepção é de facto criado pela catástrofe, mas sem ter sido decretado por qualquer soberano; a vida é deixada a si própria, enquanto a violência, tanto natural como social, é desencadeada sem consideração pela pretensão do soberano de ter autoridade exclusiva sobre a vida e a morte (idem).

Não há como negar a diferença entre destruir a vida, abandoná-la ou resgatá-la. Entre o terrorista e o soberano (Estado), existe uma zona cinzenta ocupada por organizações terroristas que procuram construir um Estado soberano e o terrorismo de Estado que procura aniquilar os movimentos dissidentes. Entre os agentes humanitários e o soberano, existe uma zona cinzenta ocupada por organizações humanitárias governamentais ou semi-governamentais que utilizam ferramentas de gestão de catástrofes sob os auspícios do soberano. Mas existe um fosso entre o terrorista e os agentes humanitários que nenhuma prática existente, apesar de todas as semelhanças estruturais observadas, pode colmatar. Claro que existem organizações terroristas – ou as chamadas organizações terroristas – que lidam com instituições filantrópicas, mas tais actividades permanecem à margem das suas tácticas terroristas. Fazem-no porque são também organizações políticas preocupadas com uma certa população. Poder-se-ia mesmo encontrar – embora isto provavelmente aconteça muito raramente – trabalhadores humanitários que tenham adoptado práticas terroristas, ou que dêem o seu apoio a actividades terroristas, mas de um ponto de vista humanitário, tal atitude permanece totalmente incidental.

A presente nota surge quando passa menos de um mês que diferentes actores, sobretudo diferentes agências das Nações Unidas, lançaram, num documento de 22 páginas, um compromisso de ‘apoio humanitário’ para 2021 (HRP), em coordenação com o Governo de Moçambique, para congregar as várias acções de apoio humanitário. No referido documento, as entidades associadas referem que a crise em Cabo Delgado agravou-se rapidamente em resultado do conflito, insegurança e violência, deixando cerca de 1,3 milhões de pessoas necessitadas de assistência e protecção humanitária urgente em 2021. O mesmo documento indica ainda que em 2021, os parceiros humanitários necessitarão de 254,4 milhões de dólares para ajudar as pessoas que necessitam de assistência humanitária em Cabo Delgado, Niassa e Nampula. Dentro destas províncias, os parceiros humanitários irão implementar respostas multi-sectoriais para pessoas deslocadas pela violência e comunidades de acolhimento vulneráveis que necessitam de protecção, segurança alimentar, apoio nutricional e acesso a água potável, cuidados de saúde, educação e abrigo.

Para fechar, voltemos ao texto de Foucher e Weissman (2019) para mostrar que no campo do ‘apoio humanitário’ em situação de crises resultantes de acções terroristas, podem existir três ângulos que nos ajudam a perceber o que está em jogo:  (1) o primeiro vê no desenvolvimento do discurso e instituições humanitárias a expansão de uma consciência global que, nas palavras de Barnett e Weiss, ‘’lenta mas impressionantemente, cria novos padrões para os Estados, produz uma nova métrica de civilização, e introduz um novo discurso para agir em benefício dos fracos e oprimidos’’; (2) o segundo ângulo, mais céptico, analisa a fabricação e gestão de ‘’crises humanitárias’’ como parte de um dispositivo retórico e policial que participa na reprodução de uma ordem política mundial dominada por estados (neo)liberais – ‘’a mão esquerda do império’’, nas palavras do antropólogo Michel Agier; (3) o terceiro ângulo é igualmente céptico em relação à visão progressiva e normativa incorporada no primeiro. Considerando como inevitável a instrumentalização da ajuda pelos poderes políticos (rebeldes ou estatais, locais ou internacionais), este ângulo salienta que as organizações humanitárias e as agências da ONU são frequentemente os ‘’idiotas úteis’’ das políticas de insurreição ou contra-insurreição.

Chegados aqui, importa referir que a luta contra o terrorismo reactivou e actualizou antigos problemas de articulação, coordenação e integração entre os operadores de ajuda internacional e os apoiantes do uso da força para salvar vidas, combatendo a ‘’barbárie jihadista’’. Quer visto de uma perspectiva de emergência ou de reconstrução e desenvolvimento a longo prazo, a assistência da comunidade internacional sempre foi uma questão política para os beligerantes. Isto não significa, contudo, que possa ser útil para apoiar estratégias de contra-insurgência para ganhar a paz – e não apenas a guerra contra o terror (De Montclos, 2020).

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