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Integridade e transparência no serviço público [bmazula]

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Comunicação apresentada na Sessão Pública organizada pela Comissão Central de Ética Pública, a convite da sua Presidente, Sra. Dra. Páscoa Themba Buque, no dia 11 de Agosto de 2022, nas instalações da Universidade Pedagógica de Maputo.

Magnífico Reitor da Universidade Pedagógica, Prof. Doutor Jorge Ferrão.

Ex.ma Sra. Dra. Páscoa Themba Buque, Presidente da Comissão Central de Ética Pública.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Recebi uma tarefa difícil, de vir falar neste nobre público de Servidores da Função Pública. Isso foi no dia 2 do corrente mês, portanto há nove dias. Hesitei muito e muito mesmo: se devia ou não aceitar o convite. Mas percebi a espinhosa tarefa que a Sra. Presidente tem. Como o tema é muito abrangente e delicado perguntei qual seria o problema ético da Função Pública. No dia seguinte respondeu-me dizendo: “O problema é: os níveis de corrupção que são notáveis e prejudicam o desenvolvimento da administração pública e consequente falta de confiança do cidadão pelo serviço público. Os actos ilícitos, o conflito de interesse, o seguimento de valores éticos pelo servidor público, é esta problemática que pretendemos abordar.” Agradeci-lhe pela clarificação do problema e eu desabafei dizendo que queria recusar porque, para este tipo de convite, peço pelo menos dois a três meses para me preparar. Sempre senti ser de grande responsabilidade a tarefa de falar em público. Justifiquei dizendo que não teria tempo suficiente para escrever a minha comunicação em uma semana. Enfim, acabei aceitando e esbocei por escrito alguns tópicos para o debate.

Vou ser breve. Vou-me basear no que vejo na sociedade e ouço nos órgãos de comunicação social, na imprensa, em alguns processos judiciais e em conversas com cidadãos de vários quadrantes.

A minha fala constará de três partes: na primeira parte tentarei apontar alguns casos de corrupção, sem ser exaustivo; na segunda, referir-me-ei a soluções que a sociedade dá a esses casos e, na terceira parte e última, a minha reflexão para provocar o debate.

* * *

Aponto apenas alguns casos de corrupção na Função Pública, sem os classificar em pequenos ou grandes, porque parto do pressuposto de que toda a corrupção prejudica a função pública, vilipendia a coisa pública, é um desrespeito ao cidadão, ao povo e trava o desenvolvimento.

Identifico cinco tipos de corrupção. Inspiro-me em alguns animais, observando o seu comportamento cotidiano. São eles: corrupção magumba, corrupção garoupa, corrupção polvo, corrupção mosca e corrupção tubarão.

  1. i. O primeiro é o que podemos chamar de corrupção magumba. Magumba é um peixe pequeno, saboroso, e alimenta-se de peixes mais pequenos do que ele, e, por vezes, serve de isca na pesca amadora. Refiro-me aos que desviam pequenas quantidades de medicamentos do Sistema Nacional de Saúde, vendem-nos nos mercados por eles identificados e, fugindo da Polícia ou da Inspeção do Estado, depositam-nos nas farmácias clandestinas abertas em seus domicílios. Refiro-me àqueles que roubam diverso material escolar do Sistema Nacional de Educação, vendem-no clandestinamente pelas ruas das cidades a um preço barato, uma vez que não pagaram imposto; quando tem medo e prevendo a descoberta da sua malandrice barateiam ainda mais como se acto de caridade se tratasse. Refiro-me também àqueles funcionários que vão retirando algum material ou bem dos serviços, como seja, lâmpadas, autoclismo, uma lata de tinta de parede, um saco de cimento, uma chapa de zinco, para beneficiar as obras de auto-construção. O sector do serviço público só se apercebe muito tarde quando o prejuízo se tornou muito visível. Refiro-me àqueles funcionários que arquivam por muito tempo o requerimento de um cidadão, à espera que ele perceba que deve dar algum valor para o despacho. Enfadonha e vergonhosa burocracia! Refiro-me também aqueles que desviam produtos doados para as populações afectadas pelas calamidades naturais. Refiro-me àqueles dirigentes que, por vingança, arquivam processo limpo de promoção de um subordinado, porque não é da mesma tribo, da mesma região ou religião, ou porque não é seu familiar. A corrupção magumba é o nível de pequenez mental; é o nível de esquizofrenia económica, portanto uma doença. Tomo mente naquele sentido de Carl Sagan, de que “a mente é o modo como apreendemos o que o cérebro faz, …”[1]
  2. ii. O segundo tipo é o que podemos apelidar de corrupção garoupa. Quando vamos ao mercado e perguntamos ao vendedor ou à vendedeira o nome do tipo de peixe que apontamos, ele diz-nos que é garoupa e mostra-nos vários formatos de garoupa. Na verdade, há várias espécies de garoupa. Os biólogos confirmam-no. Há garoupa-do-mar, garoupa gigante, garoupa mero-preto, garoupa bodejo de areia, garoupa serigado, garoupa pintada, garoupa de mancha, garoupa mycteropera venenosa, e mais. São vários os seus tamanhos. Há tempos vi no congelador de uma peixaria uma garoupa pesando mais de 10 kg. A garoupa alimenta-se de outros peixes. Geralmente não é peixe da beira do mar. Actua sozinha perseguindo as suas presas para se alimentar. Para pescar a garoupa os pescadores preparam os seus barcos e passam dias ou noites no mar, porque ela é um peixe de águas profundas.

Refiro-me àqueles funcionários que procuram encobrir com certa artimanha o desvio de bens e valores que subtraem do erário público. Não deve ser fácil apanhá-los, porque são de várias espécies como a garoupa no mar. E são venenosos. Tenho quase certeza que não deve ser fácil para as autoridades de combate à corrupção apanhá-los, porque têm de navegar em águas profundas da corrupção. Para apanhá-los é preciso também perder noites. É interessante que os ladrões dos bairros, dormem de dia e actuam de noite, quando os donos das moradias estão a dormir. Também roubam de dia quando tem a certeza de que os proprietários foram aos seus postos de trabalho. Não têm medo dos guarda nem dos cães, uma vez que eles próprios são venenosos, são mycteropera venenosa. A corrupção garoupa é o nível de fingimento traiçoeiro e venenoso, mata o sector de trabalho.

iii. O terceiro tipo é o da corrupção polvo. O polvo é conhecido pelos seus tentáculos, de vários tamanhos e são cumpridos. Pela leveza dos tentáculos, o polvo parece ser manso e inofensivo, quando a sua bravura está precisamente nos tentáculos. Ele aproxima-se devagarinho da presa, no “momento da traição” muda de cor, envolve a presa com os seus tentáculos e começa a comê-la. O polvo é extremamente traiçoeiro. O polvo fora objecto de reflexão do Padre António Vieira (1608-1697) no século XVII. No seu Sermão aos Peixes, considerou o polvo como “o maior traidor do mar”.

Refiro-me àqueles que são cabecilhas da corrupção. São muito ardilosos, matreiros, astutos e traidores. Para não aparecerem sozinhos, procuram envolver funcionários do mesmo sector ou de outros sectores e até pessoas que não trabalham na função pública. Esses funcionários e outras pessoas funcionam de tentáculos para desvio de altas somas de dinheiro do erário público. Geralmente não são funcionários de baixo escalão. Como no polvo, quem come a presa não são os tentáculos, mas o mandante, o cabecilha. Os tentáculos envolvidos no roubo apanham algumas migalhas. Alguns dos funcionários-tentáculos envolvidos só se apercebem do esquema quando há denúncia do desvio de fundos e se espantam durante o processo de julgamento no tribunal. A corrupção polvo é o nível da malvadez e estupidez. Tanto Einstein e Edgar Morin consideram a estupidez de uma dimensão infinita

  1. iv. O quarto tipo é o da corrupção mosca. Todos conhecemos muito bem a mosca. É um insecto muito incómodo. Delira lugares sujos com cheiro nauseabundo da batata podre, do tomate podre, da carne podre, do peixe podre, em suma, de tudo aquilo que é podre. O seu olfacto está afinado para a podridão e nunca para lugares perfumados e limpos. A presença de uma mosca denuncia, em princípio, algo podre. Esvoaça de um lugar para outro com muita rapidez. Dois factos curiosos: 1) se, numa lixeira, estiver uma pessoa perfumada (homem ou mulher), a mosca prescindirá dessa pessoa, porque não lhe interessa e voará rapidamente para onde sente o cheiro nauseabundo; 2) se, na lixeria, estiver uma moeda ou algum objecto precioso envolvido na sujidade, a mosca estará aí, não à procura da moeda ou do objecto precioso, mas para comer a massa suja e fedorenta, que cobre a moeda ou o objecto precioso.

Refiro-me aqui àqueles que não se contêm quando percebem que num sector x, numa instituição y ou num projecto de investimento z, circulam grandes somas de dinheiro. Então, usando da sua posição e influência nas instâncias de decisão política ou do seu estatuto na função pública, para lá saltitam para captar uma boa percentagem do valor aí investido. Gastam muito pouco nas suas deslocações matreiras, porque sabem que a sua presença nesses lugares imporá medo e exigem que essas deslocações sejam pagas com o dinheiro do erário público. Não perdem a ocasião de estarem presentes nas negociações de grandes projectos de investimento, fazendo-se de experts ou apresentando-se como grandes influenciadores para quem em última instância irá decidir e conceder a licença de exploração. Em português chama-se à pessoa indolente de mosca-morta. No sentido figurativo também se apelida de mosca à “pessoa importuna”, ou seja, “criatura que frequenta as casas das pessoas conhecidas para tomar refeições” mahala. Não devem ser poucas as pessoas desse tipo na função pública e na sociedade em geral. Fazem-se convidar para uma refeição num restaurante caro e não contribuem no acto de pagamento.

Incluem-se também na corrupção mosca aqueles professores que, usando da sua caneta vermelha para reprovar, abusam das suas alunas para se satisfazerem sexualmente; o mesmo se pode dizer daqueles funcionários da Polícia ou da Saúde que usam do seu poder para abusar sexualmente as suas funcionárias subalternas; ou o polícia de trânsito que usa da sua autoridade para extorquir o motorista pacato; os estrangeiros são suas melhores vítimas, porque acreditam que eles trazem muito dinheiro: dólares norte-americanos, euros e rands. Refiro-me também a professores que prometem aos seus estudantes atribuir-lhes notas elevadas a troco de valores monetários ou a troco de uma relação sexual. Incluem-se ainda nesta corrupção mosca aqueles aduaneiros ou agentes das Alfândegas que, abusando da sua autoridade, importam para si produtos sem pagar os impostos de fronteira e montam suas instâncias comerciais, pois eles conhecem os esquemas de legitimar a fuga ao fisco. Também podemos referir-nos àqueles dirigentes da Educação que facilitam a falsificação de certificados de estudos a troco de valores monetários ou a troco de outros interesses obscuros. Podemos incluir neste tipo de corrupção aquelas instituições do ensino superior que encurtam a rota académica dos mestrados ao reduzir o tempo de contacto do docente/estudante a pretexto do estudo centrado no aluno, quando o objectivo central é de multiplicar módulos, e assim avolumarem as receitas, extorquindo o bolso do estudante. Esse encurtamento de rota académica a este nível desqualifica o ensino, desprestigia a instituição e reduz o diploma a zero absoluto. A corrupção-mosca é o nível da cara-de-pau, sem vergonha, de um terrorismo que vai matando aos poucos. A mosca é sempre terrorista.

  1. v. O quinto tipo é o da corrupção tubarão. O tubarão é um peixe de grande porte e voraz. É também conhecido por leão marinho. Os biólogos dizem que é frequente em mares quentes; e o Oceano Índico é quente. Circula em espaços largos. Talvez por causa do seu porte move-se com facilidade em águas profundas. Não é fácil caçar um tubarão. Os pescadores usam técnicas apropriadas. Aí daquele peixe miúdo ou do mergulhador incauto que circular nos seus espaços, será num piscar de olho agredido, engolido, espedaçado ou mutilado. O tubarão gosta também do sangue humano. Ouvimos cenas tristes de pessoas atacadas por um tubarão no mar.

Saber pescar um tubarão é uma arte e uma técnica. Falar de tubarão é sempre um assunto delicado. Refiro-me aqui àqueles que fazem questão de reservar para si extensas terras ao longo do país, quase em todas as províncias, na perspectiva de que um dia conseguirão vendê-las a algum investidor estrangeiro que aparecer e queira instalar um projecto ou explorar algum recurso mineral. O pior é que não fazem nada, nem permitem que um cidadão simples toque nessas terras, muitas vezes boas para agricultura. São muito gananciosos. Refiro-me àqueles que vão construindo enormes edifícios em várias cidades do país, levando cidadãos do local a suspeitar da origem do dinheiro investido. O mais estranho é que as placas de identificação omitem o nome do proprietário. O Dicionário da Língua Portuguesa refere também a “pessoas que auferem grandes vencimentos, em especial, referentes a vários cargos”. Temos no país funcionários ou agentes da função pública que acumulam três ou quatro cargos, como se não houvesse no país mais pessoas competentes. É difícil acusá-los de corrupção, porque ocuparam esses cargos por nomeação. De qualquer maneira são, no nosso entender, tubarões. Refiro-me também ao negócio da madeira, que não é negócio de magumba, mas de tubarão, por isso a tendência é exportá-la via mar onde o tubarão possa navegar à vontade. A este tipo de funcionários não se devia hesitar em tirá-los do cargo que ocupam e substituí-los por outros. Inspirando-me em Gödel[2] e para que a se realize a transformação desejada, essa operação de substituição deve ser acompanhada pelo pela de “modus ponens”, ou seja, destacando alguém com integridade moral comprovada na gestão pública. A corrupção tubarão é o nível mais elevado de traição à Pátria.

O mais vergonhoso e triste é o alto grau de insensibilidade humana desses magumbas, dessas garoupas, desses polvos, dessas moscas e desses tubarões; eles qualificam o seu roubo como bem prestado ao Estado e à sociedade!

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Não é pretensão desta comunicação esgotar os casos de corrupção. Trouxe alguns casos para fundamentar a reflexão e alimentar o debate. Se remontarmos ao período babilónico antigo e, mais especificamente desde o Código de Hammurabi, de há sete mil anos a. C., até hoje, vemos que a humanidade sempre repudiou e condenou a corrupção pelos males que ela causa à sociedade. Ainda em nossos dias vemos como, por exemplo, os EUA, a China, o Japão e Singapura punem com rigor os corruptos, aqueles que desviam os bens públicos, particularmente valores e enriquecimentos ilícitos. Alguns países árabes são implacáveis aos corruptos. Assistimos há poucos anos, como o então Presidente das Filipinas conduziu pessoalmente a operação de destruição de carros de luxo adquiridos ilicitamente por alguns funcionários do Estado, porque insultavam a pobreza do país. Em 2017 participei numa Conferência em Genebra, Suíça. Um participante europeu, falando da corrupção galopante dos Polícias de Trânsito no seu país, disse que o Governo havia substituído todos os polícias de trânsito por soldados que haviam sido treinados de forma sigilosa para o efeito. O problema da corrupção na Polícia fora resolvido daquela maneira. Os cidadãos daquele país já não toleravam mais aquele alto grau de corrupção na Polícia de Trânsito. Consta que no ano 500 a. C. um juiz havia aceite um suborno no tribunal e realizou um julgamento injusto. O rei Cambises II da Pérsia, sabendo do caso e, uma vez comprovado o suborno, decidiu pela prisão do juiz por corrupção e ordenou que ele fosse esfolado vivo. Uma pintura do século XVI retrata esse esfolamento impressionante. A decisão do rei não ficou por aí. O rei decidira ainda que a pele removida do corpo do juiz fosse usada para estofar o assento do novo juiz, Otanes, indicado pelo juiz esfolado, Sisamnes. Otanes era filho de Sisamnes. “Otanes, em suas deliberações, foi obrigado a sempre lembrar que estava sentado sobre a pele do seu pai executado. Isso ajudou a garantir justiça e equidade em todas as suas audiências, deliberações e sentenças.” Quantos juízes escapariam hoje desse tipo de condenação? Refiro-me também aqui àqueles juízes que realizam sessões de julgamento e dão sentenças por encomenda; quando falam, percebe-se que estão buscando artigos nas leis para forçosamente justificar a injustiça da sua sentença. O mais triste é ver a sociedade forçada a conviver com uma justiça injusta, na contradição dos seus termos.

O que observamos no nosso país é que tanto o Ministério Público, através das Comissões de Combate à Corrupção, a Justiça e o próprio Governo procuram combater este mal, que desprestigia o funcionário, denigre a Função Pública, delapida o erário público, ofende a Sociedade no geral e trava o desenvolvimento. Através dos órgãos de comunicação assistimos a julgamentos que ocorrem quase em todos os tribunais provinciais ou distritais, onde os juízes aplicam aos acusados de corrupção penas nas margens estabelecidas em leis, penas que vão desde multas, prisão, arresto dos bens furtados e outras medidas para recuperação de activos. Mas o Estado não rouba? Em princípio, não. Alguém retrucava referindo-se às instituições do Estado, sobretudo, Serviços Distritais como de Educação que subtraem da folha de salários dos professores uma quantia (grande ou pequena) como contributo para o partido no poder, sem o seu consentimento; e, por sua vez, os partidos de oposição que obrigam as autarquias em seu poder para retirar do orçamento público que gerem um certo valor para os cofres do partido. Esses desvios são, geralmente, interpretados como excesso de zelo e por isso não são processados nem punidos.

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A questão é: aquelas medidas são suficientes? Os cinco tipos de corrupção que apresentamos denunciam a falta ou ausência total de formação moral e ética do funcionário e de outras pessoas envolvidas no esquema. Podemos dizer que a Função Pública está doente? Sim, podemos afirmar que ela está doente. Nota-se em todos os tipos de corrupção que falta a consciência de que ser funcionário público é, em primeiro e em último lugar, um serviço ao cidadão. Não tem consciência de que quando investido em algum cargo, o sector que vai dirigir não é sua propriedade. O funcionário deve sentir-se honrado em prestar serviço com dignidade, disciplina e lisura. A maior virtude que um funcionário do Estado deve ter em qualquer nível de responsabilidade é a honestidade, aquela virtude que Max Weber chama de “probidade”.[3] O funcionário deve ser probo. Ter a consciência de que ele é pago pelo trabalho que realiza, independentemente de receber pouco dinheiro e que há mecanismos e espaços apropriados para reclamar o aumento de salário. Os cinco tipos de corrupção denunciam que o dirigente que organiza, estimula ou arquitecta o esquema de corrupção não devia ocupar o lugar que ocupa, pois não sabe o que é Estado, nem como gerir e cuidar do bem público. Ter a consciência de que o bem público (res publica) é de todos nós, mas não é de ninguém em particular. Não tem a consciência da responsabilidade de ser dirigente duma instituição do Estado. O mais grave é que esse tipo de dirigentes são os primeiros a discursar sobre a corrupção e falam da democracia, apresentando-se como santos da função pública, quando, por detrás, estão a esconder a sua corrupção e talvez adiar o julgamento dos seus actos.

Antes de avançar para a eliminação ou redução da corrupção, há um aspecto importante a reter. Apesar da corrupção na Função Pública ser muito crítica e escandlosa, não se pode pensar que todos os funcionários públicos sejam corruptos. Temos de acreditar que a maioria dos funcionários é honesta e vive do fruto do seu trabalho. Recorrendo à reflexão de Alain Touraine, no seu livro Production de la Société (1973), são esses funcionários honestos que constituem a “classe revolucionária” que mantém a Função Pública a funcionar.

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Como, então, eliminar ou, ao menos, reduzi-la à ínfima espécie? A solução reside na educação. A questão subsequente é: Quem é responsável pela educação do servidor público? Direi que é toda a sociedade. Samora Machel dizia que “a educação é uma tarefa de todos nós.”[4] E tinha razão.  Jürgen Habermas refere-se a três “sistemas de acção” que devem ter uma “linguagem comum” e as suas funções devem correr “de certo modo juntos” para se alcançar resultados desejados. São eles: a Família (sistema de socialização), a Escola (sistema de alto grau na reprodução cultural) e o Direito (sistema ou esfera de integração social).[5]  E acrescento a Religião, como esfera de formação ética. Trata-se extensivamente de educação de valores em primeiro lugar e ela deve começar na Família. Qualquer servidor público envolvido em corrupção denuncia que não teve educação de base na família. Quando falta esta educação de base, o cargo de chefia ou de dirigente vai ser caracterizado pela arrogância, falta de respeito ao outro, uma vez que assumiu o cargo por sorte. Esse funcionário não tem nenhuma noção de pessoa humana. Pois ser dirigente ou chefe na Função Pública implica garantir ao cidadão bons serviços. Em segundo lugar, está a Escola. A Escola deve completar a educação de valores com a ciência e consolidar a ciência com valores éticos de dignidade, de respeito à pessoa humana, transparência na gestão dos bens públicos. Em terceiro lugar está a Religião. A religião é sempre uma escola de valores por excelência naquela perspectiva de John Locke (1632-1704), de formar a “mente sã em corpo são”[6]. E neste sentido o Estado tem a obrigação de velar pela educação integral dos seus cidadãos.

Termino agradecendo, mais uma vez, pelo convite. Foi para mim uma oportunidade de aprendizagem. Incidi na caracterização dos cinco tipos de corrupção mais comuns ou gritantes na Função Pública, mostrando a sua complexidade. À questão de como eliminar a corrupção, deixo para o debate.

Desejo à Comissão Central de Ética Pública muito sucesso na sua espinhosa tarefa. À experiência de outros países, se não é possível eliminar a corrupção na totalidade, é possível, sim, reduzi-la ao nível mais baixo ao da magumba.

Muito obrigado!

[1] SAGAN, Carl. Um Mundo infestado de Demónios. A Ciência como uma Luz na Escuridão. Trad. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão Bastos. Lisboa, Gradiva, 1997, p. 274.

[2]NAGEL Ernest & NEWMAN, James R. A Prova de Gödel. 2. ed.  Trad. Gita K. Guinsburg. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001, p. 47.

[3] WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo, Editora Cultrix, 1988, p. 39.

[4]MACHEL, Samora. A Educação é uma tarefa de Todos Nós.  (Orientações do Presidente Samora Machel no início do ano lectivo de 1978). Maputo, Tip. «Notícias», 1978.

[5] HABERMAS, Jürgen.  Pensamento Pós-Metafísico. Estudos Filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990, p. 99.

[6] LOCKE, John. Alguns Pensamentos sobre a Educação.  Trad. Madalena Requixa.  Coimbra, Edições Almedina, 2012, p. 57.