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Entre números, gráficos e projecções sobre a COVID-19

No dia 18 de Julho de 2019 comentei, em forma de opinião numa rede social da Internet, sobre os ‘’números controversos’’ do recenseamento eleitoral para a província de Gaza. Na mesma opinião defendíamos que os números são uma produção humana, mesmo que o seu tratamento obedeça ao comando técnico e programático, a sua reflexão não escapa ao que o manipulador comandou para ser feito.

Nenhuma estimativa ou equação deve ou pode ser tomada como exacta na combinação dos números. Aliás, a estatística social não é nada mais que a combinação desses mesmos números e a leitura quotidiana da realidade que colectamos para posterior tratamento técnico. Por maior defesa que o INE ou o/a STAE/CNE estivessem a fazer, nada mais seria que defender os seus ‘’poor numbers’’ (Jerven, 2013), produzidos sob lentes que as suas entidades consideram como correcto ou não. Podemos discutir a metodologia ou os ‘’softwares’’ utilizados, mas apenas será isso e nada a mais. Pensávamos nós que não nos devíamos assustar com o que estava a acontecer entre o INE e o/a STAE/CNE. Aliás, pelo contrário, defendíamos ser para nós uma oportunidade de se discutir o modelo menos problemático (não falamos de ideal) de produção das nossas estatísticas demográficas e eleitorais no país.

No passado sábado, 18, assisti uma entrevista do historiador e filósofo brasileiro, Leandro Karnal. Ao abordar sobre o significado dos números da actual pandemia, Karnal dizia: ‘’(…) em época de epidemia, a morte torna-se apenas uma estatística…mas precisamos entender que perderam-se vidas e não números’’. Mas antes dessa entrevista, li um artigo no jornal britânico ‘The Guardian’ (12.04.2020) intitulado ‘Coronavirus statistics: what can we trust and what should we ignore?’ [tradução literal e directa: Estatísitca sobre coranavírus: o que é verdade e o que devíamos ignorar].

No mesmo texto, o jornal avança que a proliferação de figuras, gráficos e projecções em torno da pandemia é confusa. As últimas semanas viraram uma epidemia imparável…de estatísticas. A enchente ameaça nos dominar a todos, mas o que significam todos esses números (?), perguntava o jornal. E tomando o Reino Unido como exemplo, em forma de hipótese foram avançados oito passos explicativos em torno dos números da COVID-19, os quais passo a partilhar:

(1) o número de novos casos por dia: isso pode reflectir muito pouco o número de pessoas que foram realmente infectadas, pois depende crucialmente do regime dos testes feitos até ao momento;

(2) o número de novas mortes a cada dia: o leque de fontes é desconcertante. Os anúncios diários devem ser tratados com cautela, pois incluem apenas mortes no hospital daqueles que deram positivo para o coronavírus, e geralmente há um atraso no relato de mortes de alguns dias ou até mais;

(3) o número total de mortes: gráficos de mortes acumuladas são mostrados na conferência de imprensa diária do Governo, mas são uma ferramenta inútil para detectar tendências: precisamos de contagens diárias para ver se é alcançada uma variação da curva entre infectados, mortos e recuperados;

(4) números apresentados em uma escala logarítmica: estes terão um eixo vertical identificado como 1, 10, 100, 1.000. Eles são úteis para comparar tendências, mas inúteis para obter uma impressão da magnitude do problema;

(5) previsões de modelos: existem dois, sendo que o primeiro modelo tenta modelar a epidemia em si, fazendo suposições simplificadas sobre o mecanismo pelo qual um vírus se espalha através de uma comunidade. Quantidades importantes, como quantas pessoas um caso médio irá infectar, são altamente incertas no início de uma epidemia, mas são refinadas à medida que mais dados são colectados. O segundo tipo de modelo é puramente empírico, ajustando curvas aos dados observados e fazendo suposições sobre o formato da curva para extrapolar no futuro. Essas projecções precisam ser visualizadas com extrema cautela, pois podem ser sensíveis em alguns pontos de dados;

(6) “excesso de mortes’’: o número de mortes extra que serão registadas nesse período, devido à COVID-19 ou ao isolamento social, é muito contestado. Vidas serão perdidas por causa da doença, cuidados médicos reduzidos para todos, violência doméstica e os efeitos do desemprego e da pobreza; e vidas serão salvas com menos acidentes e, principalmente, com a melhoria da qualidade do ar;

(7) os riscos letais para os infectados: estes variam dramaticamente com a idade e a fragilidade, assim como os riscos ‘’normais’’. De facto, as estimativas actuais para o público em geral (e não para os profissionais de saúde) parecem notavelmente semelhantes aos riscos que enfrentamos de qualquer maneira a cada ano – o que difere é a velocidade ao longo das semanas;

(8) a “precisão” de um teste de anti-corpos: mesmo testes de anti-corpos aparentemente precisos podem levar a muitas garantias falsas de imunidade. Mas um teste menos preciso pode ser bom se estivermos a testar uma amostra representativa para estimar a proporção de uma população que tem imunidade.

In fine, admitindo a minha total ignorância na matéria, e sem tirar o mérito aos especialistas em saúde e modelização epidemiológica, face ao colocado antes, uma pergunta ocorre-nos: o que valem os números numa pandemia? Se respostas encontrarmos, nenhum espanto haverá sobre os prováveis 20 milhões de infectados em Moçambique…num pior cenário, claro.

Referências

Jerven, M. Poor numbers: how we are misled by african development statistics and what to do about it. Cornell University Press. 2013.

The Guardian: Coronavirus statistics: what can we trust and what should we ignore?, 12.04.2020.